Consciência Negra e Terapias Integrativas não são temas separados. Quando a gente olha com calma para quem criou, sustentou e transmitiu muitos saberes que hoje chamamos de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICS) no Sitema Público de Saúde (SUS) e Sistema Privado aqui no Brasil, não tem enrolações: povos negros, povos originários, comunidades tradicionais, terreiros, quilombos e aldeias. E agora os dados oficiais mostram que esse campo, historicamente marginalizado, está atendendo quase 4 milhões de pessoas só em 2025 na rede pública.
OS NÚMEROS QUE ESCANCARAM A FORÇA DAS PICS NO SUS
Dados do Ministério da Saúde, divulgados pela Agência Brasil, mostram que, de janeiro a agosto de 2025, 3.757.950 pessoas participaram de procedimentos em Práticas Integrativas e Complementares na atenção primária, um aumento de 14,2% em relação ao mesmo período de 2024.
A matéria também mostra que:
- Auriculoterapia responde por 26% da expansão em 2025;
- PICS coletivas, como práticas corporais da medicina tradicional chinesa, cresceram 13%;
- Uso de plantas medicinais e fitoterapia aumentou 11%;
- Meditação cresceu 8% no período.
Em 2024, o SUS registrou 7,1 milhões de procedimentos em PICS, com mais de 9 milhões de pessoas atendidas, em 21 mil unidades de atenção primária, distribuídas em 84% dos municípios brasileiros. Em 2025, os dados preliminares já apontam quase 4 milhões de pessoas atendidas.
O QUE A ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE VEM DIZENDO FAZ TEMPO
No cenário internacional, a Organização Mundial da Saúde vem batendo na mesma tecla há anos: a medicina tradicional, complementar e integrativa é um recurso central para a saúde global, especialmente em doenças crônicas e no cuidado de populações envelhecidas.
O Relatório Global da OMS de 2019 mostra que 170 países (88% dos Estados-membros) reconhecem oficialmente o uso de medicinas tradicionais e complementares e têm se movimentado para criar marcos regulatórios, políticas e pesquisa na área.
Quando o Brasil expande PICS no SUS e leva esses dados para o 3º Congresso Mundial de Medicina Tradicional, Complementar e Integrativa, no Rio de Janeiro, junto com a nova Estratégia Global 2025–2034 da OMS, evidencia para o mundo a importância que as PICS tem aqui no Brasil.
PNPIC, TERRITÓRIO E SABERES ANCESTRAIS
A Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) não nasceu “do nada”. Ela foi construída a partir de conferências nacionais de saúde e das recomendações da própria OMS, com o objetivo de incorporar experiências já existentes nos territórios, muitas delas ligadas a saberes populares, indígenas e de matriz africana, ao SUS.
Na prática, a PNPIC:
- Aproxima o SUS da realidade cultural das comunidades.
- Reconhece sistemas médicos complexos (como medicina tradicional chinesa, homeopatia, medicina antroposófica);
- Abre espaço para fitoterapia, uso de plantas medicinais, práticas corporais e energéticas;
Quando conectamos isso com Consciência Negra e Terapias Integrativas, fica evidente que estamos falando também de reconhecer quem historicamente sustentou o cuidado em saúde fora dos hospitais: parteiras, benzedeiras, curandeiros, raizeiros, mães e pais de santo, pajés e tantos outros.
CONSCIÊNCIA NEGRA E TERAPIAS INTEGRATIVAS COMO DISPUTA DE PODER
Pesquisas em epistemologia política mostram que a implementação das PICS no SUS é marcada por disputas muitas vezes desleais: de um lado, recomendações da OMS e políticas do Ministério da Saúde; de outro, parte da elite científica e biomédica tentando desqualificar essas práticas como “não científicas”, pedindo sua exclusão do sistema público.
Autores mostram que, muitas vezes, o que está em jogo não é só método científico, mas quem tem o direito de produzir conhecimento válido em saúde.
Quando saberes que nascem em quilombos, aldeias e terreiros são chamados de “crendice”, mas, rebatizados como “mindfulness” ou “lifestyle medicine”, estamos vendo o velho roteiro da colonialidade do saber se repetir com outra roupa.
OS DADOS DO SUS FORTALECEM CONSCIÊNCIA NEGRA E PRÁTICAS INTEGRATIVAS
Quando o Ministério da Saúde mostra que quase 4 milhões de pessoas foram atendidas em 2025 e mais de 9 milhões em 2024, com expansão consistente em auriculoterapia, práticas corporais, plantas medicinais e meditação, ele evidencia também que:
- As PICS não são modismo, são saberes e demanda real da população;
- As PICS não são improviso, têm formação séria (como AVASUS, que já capacitou 340 mil profissionais), monitoramento e pesquisa associada;
- As PICS dialogam diretamente com a Estratégia Global da OMS e com o que o mundo está discutindo.
Tudo isso deixa claro que não dá pra falar de política de saúde sem incluir a pauta das PICS. E não dá pra falar de PICS sem olhar para raça, território e história.
É aqui que Consciência Negra e Terapias Integrativas se tornam eixo político (e não estou falando da famigerada política partidária).
RACISMO, INJUSTIÇA EPISTÊMICA E O LUGAR DO TERAPEUTA DAS TERAPIAS INTEGRATIVAS
No debate filosófico, a ideia de “injustiça epistêmica” ajuda a explicar o que acontece há muitos anos e que nas Práticas Integrativas não seria diferente: grupos historicamente oprimidos têm seu testemunho, sua experiência e seu conhecimento desqualificados. Isso vale para pessoas negras, indígenas, periféricas e, claro, para seus modos de cuidar.
Na saúde, isso aparece assim:
- A benzedeira é “crendice”;
- O terreiro é “superstição”;
- O pajé é “folclore”;
- Mas quando o mesmo saber entra numa universidade branca, vira “protocolo”, “ensaio clínico”, “intervenção baseada em evidências”.
Estudos sobre PICS no SUS mostram que essa disputa não é abstrata, é uma batalha concreta por legitimidade, financiamento, espaço institucional e poder de decisão. Se você atua com PICS e acha que “não gosta de falar de política”, alguém vai decidir esse jogo por você e, quase sempre, contra você e contra os saberes que te formaram.
POR QUE TERAPEUTAS EM PICS PRECISAM SE POLITIZAR DE VERDADE
Todo mundo que atua com as PICS precisa entender o nível desse jogo.
Isso significa:
- Estudar a PNPIC, as portarias, os relatórios e os dados oficiais;
- Acompanhar o que a OMS está deliberando na Estratégia Global 2025–2034;
- Ler autores que discutem Epistemologias do Sul, racismo estrutural e disputa de narrativas em saúde;
- Reconhecer, com humildade e coragem, as raízes negras e indígenas de muitas técnicas que você aplica hoje nos seus atendimentos.
Mais do que isso, quem trabalha com PICS precisa se ver como ator político, não só como técnico que aplica PICS em protocolos terapêuticos.
Quando terapeutas compreendem Consciência Negra e Terapias Integrativas como pauta de justiça histórica, começam a:
- Defender políticas públicas;
- Apoiar pesquisas sérias que incluam populações negras e originárias, não só brancas;
- Tensionar conselhos profissionais e associações que repetem um discurso de exclusão em nome de uma “ciência” que não é neutra.
CONSCIÊNCIA NEGRA E TERAPIAS INTEGRATIVAS COMO PROJETO DE FUTURO
Os novos dados oficiais mostram que as PICS já são parte da vida de milhões de pessoas. A questão agora é seguinte: vamos permitir que esse campo seja arrancado de suas raízes e pasteurizado, ou vamos sustentar um projeto em que política pública, ciência e sabedoria ancestral caminhem juntos?
Como terapeuta ou profissional de saúde, você não está no meio de um fenômeno “alternativo”. Você está dentro de uma disputa histórica. E o jeito como você se posiciona, nas redes, na formação, no consultório, nas conversas informais, ajuda a decidir se esse movimento vai fortalecer quem sempre esteve à margem ou só reforçar os mesmos de sempre no topo da pirâmide.
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Até o próximo, Murilo.




